domingo, 16 de agosto de 2009

O aristotelismo como tradição originária da filosofia no Brasil

Luiz Alberto Cerqueira

Notas ao final do texto

1

Para estabelecer um conceito rigoroso de “aristotelismo no Brasil”, refiro-me previamente à Ratio Studiorum, o método pedagógico dos jesuítas introduzido no ensino público em Portugal a partir de 1555 — quando foi confiado à Companhia de Jesus o real Colégio das Artes —, ao qual devemos reportar-nos para saber o que e como era o ensino filosófico no curso de Artes dos colégios jesuítas. Isto porque o primeiro curso de Artes no Brasil Colônia ocorreu nos anos de 1572 a 1575, oferecido pelo colégio jesuíta da Bahia, cuja fundação, juntamente com os colégios de Olinda e do Rio de Janeiro, ocorreu na década de 1560. Desde então, até à reforma pombalina da Universidade, em 1772, o ensino público de disciplinas filosóficas no Brasil seguiu a recomendação oficial da doutrina de Aristóteles[1].

Não se confunda, entretanto, este aristotelismo, cuja fidelidade a Aristóteles tem um caráter oficial, com a eventual admiração provocada pelo estudo da doutrina aristotélica em qualquer época. Assim, depois que o aristotelismo da Ratio Studiorum foi excluído do ensino público pelas reformas do Marquês de Pombal, vemos o filósofo Silvestre Pinheiro Ferreira publicar na corte portuguesa, então estabelecida no Rio de Janeiro, não só um curso moderno de preleções filosóficas (1813), como também a edição em língua portuguesa das Categorias de Aristóteles (1814) “para uso das Preleções filosóficas do mesmo tradutor”[2].

Mas, afinal, tem significado filosófico esse aristotelismo oficial? Na versão da Ratio Studiorum de 1565-1570 já são indicadas, nos textos de Aristóteles, as questões que devem ou podem ser omitidas, as que devem ser estudadas apenas sumariamente e as que devem receber maior atenção, o que revela o caráter tutelar da missão educativa institucional sobre o uso teórico da razão. Mas essas indicações não são, de modo algum, aleatórias. No caso da Metafísica, por exemplo, deve observar-se a prioridade dada aos livros I, V, VII, VIII, IX e XII, o que pressupõe não só a preocupação de hierarquizar os conteúdos, mas também uma compreensão da obra de Aristóteles como um todo[3]. Neste sentido, o aristotelismo da Ratio Studiorum pressupõe um conceito da própria filosofia. Mas, qual?

Se se trata de fé, considero o caráter contemplativo e transcendente da evidência, para além dos limites da experiência, acerca do que sinto como sendo verdadeiro, belo e bom, e por isso mesmo considero que se trata de uma evidência subjetiva não comprovável pelo método matemático-experimental nem por critérios objetivos; se ainda considero o fato de que no âmbito dessa espécie de evidência marcada pela intensidade da emoção e do sentimento não cabe a dúvida, eis porque nas circunstâncias da vida se torna imprescindível que o seu valor seja absoluto. Historicamente, à evidência da fé se contrapôs a evidência de caráter imanente e de valor relativo alcançada pelo método da ciência moderna. Desse modo, historicamente falando, tornou-se necessária — sobretudo a partir das obras e do magistério de humanistas como Erasmo, Juan Luis Vives, Petrus Ramus e Melanchthon — a introdução no ensino público de uma mudança na forma de pensar para estimular e empreender o próprio uso da razão com vistas a evidências de caráter imanente e relativo, contrariamente ao hábito generalizado de ver e entender com base na certeza absoluta. Mas embora tais conceitos de evidência se oponham no plano teórico, as duas instâncias de conhecimento subjetivo e objetivo podem coexistir no plano da ação, ainda que numa luta marcada pela controvérsia. Sem o sentido dessa luta não podemos dar conta da filosofia em sua historicidade. E como prova, refiro-me à história do próprio aristotelismo até à sua consagração oficial na Universidade de Paris, em 1366, quando a Santa Sé impôs aos candidatos à Licenciatura de Artes a obrigação de estudar os mesmos textos aristotélicos tão longamente proibidos pela autoridade religiosa. Suponho, portanto, que a mudança de método na maneira de pensar introduzida pelos “modernos” nada tem a ver contra a admiração suscitada pela doutrina de Aristóteles desde a Antiguidade, senão contra a fidelidade cega.

Desse ponto de vista, julgo necessário um esclarecimento acerca de uma antiga tese de Sílvio Romero, que em estudo pioneiro afirmou, “em virtude da indagação histórica, que a Filosofia, nos três primeiros séculos de nossa existência, nos foi totalmente estranha”[4]. Parece-me claro que, enquanto referência histórica da ideia de filosofia brasileira, essa tese deve ser o ponto de partida para a discussão acerca da significação do aristotelismo em uma História da Filosofia no Brasil. Minha intenção é dupla: (i) combater a concepção historicista da filosofia no Brasil, e (ii) consolidar a ideia, já apresentada no meu livro Filosofia brasileira – Ontogênese da consciência de si, do aristotelismo como tradição originária da filosofia no Brasil.

2

Se concebêssemos as ideias filosóficas como fenômenos históricos, cuidando, porém, que na História a evolução segundo a seleção natural também é uma lei, certamente seríamos levados a concordar com Sílvio Romero quanto ao modo de explicá-las pelo critério da descendência dentro da cultura a que os filósofos pertencem enquanto povo. Seu exemplo é o da filosofia alemã: “Kant dá Fichte; este dá Schelling e, por uma razão imanente ao sistema, aparecem, ao mesmo tempo, Hegel e Schopenhauer”[5]. Com base nesse critério, à medida que ele estudava as obras filosóficas de seus conterrâneos constatava que “neste país, ao contrário, os fenômenos mentais seguem outra marcha”, pois, “as ideias dos filósofos, que vou estudando, não descendem umas das outras”[6]. Ora, se o fenômeno filosófico presente deve ser considerado o último elo de uma corrente, como realizar uma História da Filosofia no Brasil se os autores estudados não se conheceram? E mesmo quando, por exceção, se conheceram — considere-se, portanto, que Gonçalves de Magalhães foi aluno de Francisco de Monte Alverne —, se nenhum aproveitou do antecessor? Tal situação se constituiu num dilema.

Teoricamente, o dilema de Sílvio Romero apresenta a seguinte configuração historicista: ou as ideias filosóficas têm a sua origem na história da cultura nacional ou não têm, sendo que, independentemente das hipóteses, a história da filosofia segue a sua marcha para o futuro. Mas a natureza do dilema tem a ver com os instrumentos metodológicos utilizados. No Brasil, a questão sobre o uso de critérios das “ciências naturais”, como o de Darwin, para explicar os fenômenos mentais, só passou a ser discutida criticamente mais tarde, por Farias Brito. Portanto, como Sílvio Romero não se deu conta do problema, parece logicamente compreensível que, uma vez que ele tivesse reconhecido a existência de um processo de recepção da filosofia moderna no Brasil[7], mas, ao mesmo tempo, não encontrando na história da própria cultura brasileira a fonte dessa modernização, ele considerasse importante ressaltar que, em nosso caso, “a fonte [...] é extranacional”[8]. Assim se explica por que Sílvio Romero apontou como premissa de uma História da Filosofia no Brasil a falta de um elo irredimível entre o passado e o presente. E nessa mesma perspectiva historicista, tomando o futuro como a tendência de um processo objetivo e universal (o famigerado “bonde da História”), e considerando que em virtude desse elo perdido por necessidade os estudiosos da filosofia têm que buscar em outras culturas a fonte de sua inspiração, filiando-se a autores estrangeiros, também não surpreende a conclusão de Sílvio Romero de que o fato de a fonte ser extranacional “não é um prejuízo, antes equivale a uma vantagem”[9].

Como tentativa de superação do dilema romeriano, temos a teoria de Miguel Reale. Para ele, a filosofia no mundo moderno vive da recepção das ideias universais condicionadas ao contexto cultural de cada povo. Vendo de uma maneira muito simplificada, ele substituiu o critério da descendência segundo a seleção natural pelo critério da recepção segundo a preferência. Para tanto, ele se baseou na distinção entre dois sentidos da cultura e na relação de imanência entre eles, ao referir-se à “maneira pela qual cada ‘cultura fundamental’ e, no seio desta, cada ‘cultura nacional’ situam os problemas da filosofia”[10]. Sendo a cultura, neste último sentido, constituída pelas preferências comuns de um povo referidas a causas geográficas, étnicas, linguísticas, como também a conjunturas históricas, no primeiro sentido a cultura seria constituída pelo permanente empenho, de caráter ontológico e universalizante (e por isso mesmo extranacional), de condicionar essas preferências a padrões ou tendências gerais subjacentes ao desenvolvimento histórico[11]. A tarefa específica dos filósofos seria, portanto, a recepção de ideias e problemas universais. Mas o modo de recepção em função da preferência, como fator condicional da experiência e da vida de um povo, é que conferiria o caráter nacional à atividade filosófica.

Embora incensado como o fundador da primeira e única corrente filosófica brasileira — o “culturalismo” —, Miguel Reale manteve a mesma perspectiva historicista de Sílvio Romero. Como primeiro elo de sua corrente ele “descobriu” Tobias Barreto[12], cujo conceito de cultura como antítese da natureza segundo uma causalidade final Reale interpretou como sendo a consolidação da preferência brasileira pelo modo do ser moderno, e pelo futuro da própria filosofia[13], em oposição à preferência portuguesa circunscrita às próprias tradições (o referido “tradicionalismo em Portugal”). Dessa maneira, Reale condenou ao limbo a filosofia no Brasil durante o período colonial[14], no que foi seguido por muitos, principalmente Antônio Paim com sua prestigiosa História das ideias filosóficas no Brasil, logrando, assim, estabelecer a perspectiva historicista como um ponto de vista comum para todo o estudioso da filosofia no Brasil[15].

A esta perspectiva historicista eu me oponho. Certa vez, ao tentar esclarecer o conceito do aristotelismo no Brasil, logo fui interrompido — “Mas qual aristotelismo? Em que período?” Sejamos claros: há muitas vantagens em considerar separadamente o plano teórico das ideias, assim como há muitas maneiras de mostrar que essa separação é só de razão. O caráter filosófico das ideias e dos problemas, como se sabe, é o fato de serem universais. Mas tendo em vista a relação entre os universais e o homem particular que os concebe, em que sentido se deve entender que “o caráter universal não exclui que a filosofia seja nacional”? Ao que parece, este corolário de Giovanni Gentile é uma corruptela do famoso argumento de Tomás de Aquino em que este conclui que o caráter abstrato do universal “homem” não exclui a matéria, apenas não inclui as determinações acidentais e circunstanciais do corpo ou matéria assinalada deste homem particular[16]. Ora, parafraseando o argumento original: se a universalidade das ideias não exclui o “eu penso”, mas apenas não inclui as minhas determinações particulares enquanto sujeito de ideias (nomeadamente: a cultura nacional), então posso concluir com maior precisão e rigor que o caráter universal das ideias filosóficas, isto é, o modo como são concebidas, é indiferente ao contexto e à nacionalidade de quem as concebe. Em outras palavras: a exigência de universalidade nas ideias filosóficas não impede o conhecimento particular de si mesmo como povo dentro de um contexto histórico e condicionado à circunstância da cultura nacional, mas a recíproca não é verdadeira. Assim, à medida que a filosofia se emancipou da tutela da teologia, ficando o problema da relação entre a fé e a razão exclusivamente para a teologia, estabeleceu-se desde então um novo ideal de conhecimento dentro das diferentes culturas modernas. Este ideal é a ciência universal e objetiva, como a entendemos desde a “revolução científica” empreendida pelos físicos modernos. E foi ao abrigo da ciência do homem moderno, assimilada como tendência, que Sílvio Romero passou a combater o caráter transcendente e contemplativo do antigo ideal de conhecimento na cultura brasileira, afirmando, por exemplo, que a poesia, assim como a religião, “perdeu todos os ares de mistério, depois que a ciência do dia imparcial e segura penetrou, um pouco mais amplamente, no problema das origens”[17]. Até aí estou de acordo. Mas a circunstância histórica do seu uso da ciência como instrumento de combate contra o “atraso” da filosofia no Brasil, então denunciado por Tobias Barreto[18], o impediu de ver que o critério genético de Darwin, baseado na relação de causa-e-efeito, só se aplica no domínio da natureza, e não no domínio da cultura e das ideias, no qual prevalece a causalidade final subordinada não só ao entendimento, mas sobretudo ao desejo.

Não sei qual o propósito de tentar justificar o injustificável. Afinal, o que seria uma preferência cultural brasileira por uma postura “mais crítica, pessimista e cética”[19], enquanto se manteve a filosofia tutelada no Brasil? Quando eu disse que o aristotelismo português configura-se como um meio exclusivo, uma porta independente, pela qual tanto se pode chegar à filosofia medieval e daí à filosofia antiga, como se pode chegar à filosofia moderna e daí à filosofia contemporânea[20], usei ‘meio exclusivo’ para referir-me ao peculiar significado que esse estudo pode acrescentar à formação filosófica no Brasil de hoje. Peculiaridade esta que faz do aristotelismo da Ratio Studiorum a condição de possibilidade da emancipação da filosofia no Brasil.

Defendo um conceito de filosofia brasileira que implica o aristotelismo da Ratio Studiorum como sendo a sua condição. Do ponto de vista histórico, o que defendo é pouco. Mas supondo a filosofia como a tentativa do homem de colocar-se acima de sua condição, de ver a sua condição fora de si mesmo, esse pouco é tudo.

3

Ao final da década de 1980, meu ponto de partida para o estudo do aristotelismo no Brasil foi a necessidade de distinguir o conceito de aristotelismo português do uso equívoco de ‘Segunda Escolástica Portuguesa’ na proposição de que a “Segunda Escolástica Portuguesa [...] logrou estabelecer o mais completo isolamento em relação ao pensamento moderno”[21]. A equivocidade me parece evidente na medida em que o nome exprime pelo menos dois sentidos diferentes para significar a mesma coisa, sendo que num sentido a Segunda Escolástica Portuguesa é criadora (o “período barroco”) e noutro (o período “escolástico propriamente dito”) não é[22]. Mas o meu interesse não foi despertado apenas pela observação lógica, nem somente pelo interesse estrito no estudo da filosofia no Brasil. Na verdade, eu não vejo qual a necessidade de cavar um abismo entre a filosofia moderna e o aristotelismo conimbricence do século XVI.

Não tenho dúvida de que a entrada da Companhia de Jesus em Portugal, assim como o seu encargo oficial de administrar o real Colégio das Artes criado pelo Rei D. João III junto à Universidade de Coimbra, são fatos que se explicam no contexto da Contrarreforma, e que nesse contexto as antigas teses escolásticas não se misturam com ideias modernas. Nesse contexto, os inacianos logo assumiram posição de defesa da teologia filosófica tomista contra as teses dos reformadores Lutero e Calvino. Mas se é verdade que a Companhia de Jesus teve papel destacado na Contrarreforma, também é verdade que mestres jesuítas se destacaram como verdadeiros filósofos. Basta lembrar a querela “de auxiliis” sobre a possibilidade de conciliar a presciência e a predestinação divinas com a exigência humanística da liberdade de arbítrio como princípio de dignidade do homem. Em outras palavras: se tudo que acontece está previsto na mente do Criador, qual é o mérito do homem na ação moral?[23] O fato é que da participação dos mestres jesuítas na querela resultou a famosa doutrina que recebeu o nome de ciência média (scientia media), cuja autoria se atribui a Luis de Molina[24]. Cabe aqui também chamar a atenção para o significado dos Conimbricenses na história da filosofia. Considerado com vistas à filosofia moderna, o pensamento dos mestres de filosofia do Colégio das Artes, especialmente Pedro da Fonseca, ganha um novo colorido e um novo valor. Isto pode ser verificado mais facilmente nos dias de hoje. Com rigor e elegância, Amândio Coxito nos mostra, por exemplo, que, antes mesmo de Descartes, o problema do método ocupa uma posição significativa tanto em Pedro da Fonseca como nos Conimbricenses[25]; e que ao adotar a metodologia da lógica tópica, Fonseca revela, em sua atitude, “um certo fundo de ceticismo”, bem como os seus débitos para com o espírito da filosofia renascentista[26]. Da mesma forma, António Martins, em seus estudos sobre os Commentariorum in libros metaphysicorum Aristotelis, de Pedro da Fonseca, nos mostra a relevância do pensamento deste autor em face do moderno conceito da liberdade[27]. A publicação on-line do Curso Conimbricense e do Comentário ao ‘De Anima’ de 1598, além da tradução portuguesa deste Comentário, são iniciativas recentes do Departamento de Filosofia da Universidade de Coimbra que confirmam o dinamismo nessa área de estudos.

Além da “Segunda Escolástica Portuguesa”, outra concepção confusa que nada acrescentou à pesquisa filosófica, mas que continua causando prejuízos ao conhecimento da formação filosófica no Brasil, é a do “saber de salvação”. Em que consiste? Segundo Antônio Paim, o “elemento definidor consiste no desprezo do mundo [...] aqui identificado sobretudo com a dimensão corpórea, na qual se integra o próprio homem. Concebe-se a este como ser corrompido precisamente em decorrência da circunstância”[28]. E qual o prejuízo gerado por esta concepção? Isto me parece evidente, quando se alega, contra a visão de mundo durante o “período do catolicismo barroco”, uma inconsistência ou contradição entre o plano das ideias e o plano da ação, tomando-se a “visão salvacionista do mundo” como pressuposto. A principal vítima deste enfoque caviloso é o Padre Antônio Vieira[29], sobre quem já afirmei, e ratifico, que se se justifica um interesse filosófico em seus textos, isto não se deve às questões nem aos problemas por ele suscitados no intuito de converter os homens à religiosidade cristã e católica, senão à universalidade de suas concepções ao pensar tais questões e problemas na perspectiva exegética e hermenêutica dos Conimbricenses.

Dentro de uma cultura em que a formação moral dependia exclusivamente da conversão religiosa, Vieira empenhou-se em provar que as ações verdadeiramente eficazes e meritórias implicam o conhecimento de si. Segundo Vieira, não se compreende o conhecimento de si, como um saber específico, dissociado da virtude enquanto a firme disposição a querer e praticar aquilo que se apreendeu pelo entendimento, de modo a fazer de si mesmo um ente poderoso, belo e bom:

“Neste mundo racional do homem, o primeiro móbil de todas as nossas ações é o conhecimento de nós mesmos [...] Todos comumente cuidam, que as obras são filhas do pensamento ou idéias, com que se concebem e conhecem as mesmas obras: eu digo que são filhas do pensamento e da idéia, com que cada um se concebe, e conhece a si mesmo [...] A imagem mais perfeita, a proporção mais ajustada, e medida mais igual da obra, é o conhecimento de si mesmo em quem a faz [...] Quando Davi se pôs em campo contra o Golias, Saul desconfiava da vitória, e Davi não: e por quê? Porque Saul media a Davi com o Gigante, e Davi media-se a si consigo mesmo [...] Sendo pois o conhecimento de si mesmo, e o conceito que cada um faz de si uma força tão poderosa sobre as próprias ações” (As Cinco Pedras da Funda de Davi, I).

Mas o que tem a ver a conversão com o conhecimento de si? “Que coisa é a conversão de uma alma”, explica ele, “senão entrar um homem dentro em si, e ver-se a si mesmo?” (Sermão da Sexagésima, III):

“ao homem que se ignora, se lhe mande que saia [...] Mas, donde há de sair? Do corpo [...] enquanto o homem não sai do corpo, ignora-se, e só quando sai dele se conhece [...] para que o homem se conheça, há de entrar em si mesmo; e este sair de si, é entrar em si; porque é sair do exterior do homem, que é o corpo, e entrar e penetrar o interior dele, que é a alma.” (As Cinco Pedras da Funda de Davi, II)

Vieira não tem dúvidas: “Eu sou a minha alma” (idem, IV). E o que significa ‘alma’, senão, basicamente, a memória, o entendimento e, sobretudo, a vontade, que é maior que o entendimento? Por isso mesmo, é pelo corpo e pelo apetite movendo a vontade que o homem se engana, erra e peca. “Almas, almas, vivei como almas”, diz Vieira, “se conheceis que a alma é racional, governe a razão, e não o apetite” (idem, V). Portanto, à conversão enquanto possibilidade do desengano, e forma da salvação das almas, corresponde um saber específico: o conhecimento de si em separado do corpo. Esta separação, entretanto, nada tem a ver com “desprezo do mundo”, senão com aquilo que já fora concebido pelos gregos: a liberdade da alma alcançada em vida pelo uso da razão:

“ainda que o homem verdadeiramente é composto de corpo e alma, quem se conhece pela parte do corpo ignora-se, e só quem se conhece pela parte da alma se conhece [...] tratava São Paulo o seu corpo, como se não fora parte sua, senão um escravo rebelde, e como tal o castigava, e domava a açoites [...] e como tal suspirava por se desapegar, e livrar-se dele [...]separemos [...] ao senhor do escravo [...] vivamos como almas separadas. As nossas almas todos sabem que têm dois estados, um nesta vida de alma unida ao corpo, outro depois da morte, que é e se chama de alma separada. Este segundo estado é muito mais perfeito; porque, livre a alma dos embaraços e dependências do corpo, obra com outras espécies, com outra luz, com outra liberdade [...] se a morte há de fazer por força esta separação, por que a não faremos nós por vontade? Por que não fará a razão desde logo, o que a morte há de fazer depois? Oh que vida! Oh que obras seriam as nossas tão outras do que são!” (Idem, II-IV)

Cumpre observar, ademais, que o conhecimento de si em Vieira não constitui um fim em si mesmo, senão uma disposição para o modo mais perfeito da existência humana: a sociabilidade. Neste aspecto, ele não se afasta da doutrina aristotélico-tomista, segundo a qual o conhecimento não é princípio de ação se não se acrescenta uma inclinação para produzir o efeito, e essa inclinação é a vontade indiferente ao próprio apetite: “Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que nós queremos, e não havemos de querer o que elas dizem?” (Sermão da sexagésima). Desse modo, é pela indiferença na vontade que uma alma se obriga a fins em vista do bem comum, transformando-se a obrigação em essência do homem moral; e é pelo dever (officium) no agir que o hábito se transforma em natureza do homem moral; é desse modo, enfim, que a manifestação da indiferença na vontade significa a evidência, conforme a ética aristotélica, de que o próprio bem se reveste de um caráter mais belo e divino quando beneficia a sociedade:

“Bom era que nos igualáramos todos: mas como se podem igualar extremos que têm a essência na mesma desigualdade? Quem compõe os três estados do Reino, é a desigualdade das pessoas. Pois como se hão de igualar os três estados, se são estados porque são desiguais? Como? Já se sabe que há de ser: Vos estis sal terrae. O que aqui pondero é que não diz Cristo aos Apóstolos: Vós sois semelhantes ao sal; senão: Vos estis. Vós sois sal. Não é necessária Filosofia para saber que um indivíduo não pode ter duas essências. Pois se os Apóstolos eram homens, se eram indivíduos da natureza humana, como lhes diz Cristo que são sal: Vos estis sal? Alta doutrina de estado. Quis-nos ensinar Cristo Senhor nosso, que pelas conveniências do bem comum se hão de transformar os homens, e que hão de deixar de ser o que são por natureza, para serem o que devem ser por obrigação [...] porque o ofício há-se de transformar em natureza, a obrigação há-se de converter em essência, e devem os homens deixar o que são, para chegarem a ser o que devem. Assim o fazia o Batista, que, perguntado quem era, respondeu: Ego sum vox: Eu sou uma voz. Calou o nome da pessoa, e disse o nome do ofício” (Sermão de Santo Antonio, de 1642).

Finalmente, cumpre ressaltar o caráter transcendente e contemplativo dessa indiferença na vontade como expressão de liberdade. Em pregação à Irmandade dos Pretos de um Engenho de açúcar na Bahia, Vieira compara a situação dos escravos ao martírio de Cristo. O teor do sermão é o seguinte: “Todos querem [...] ser glorificados com Cristo; mas não querem padecer, nem ter parte na Cruz com Cristo” (Sermão XIV, da série Maria Rosa Mística). Dessa forma, pregava ele que, embora escravizado e vivendo em promiscuidade numa realidade “que é uma semelhança de inferno”, o negro africano poderia converter o “inferno” em “paraíso”. E como alcançaria isto senão pela conversão de si mesmo mediante o conhecimento de si e vivendo como “alma separada”, fazendo sua a vontade de Deus, a exemplo de Cristo no Calvário. Pois se é pelo corpo que o homem padece o que não quer, é pelo conhecimento de si como alma que ele se liberta da dor e se salva do “inferno”. Eis como Vieira se dirige aos negros escravizados no Engenho enquanto cristãos, isto é, no mesmo sentido em que ele considera cristão “todo o homem que tem a fé e conhecimento de Cristo, de qualquer qualidade, de qualquer nação, e de qualquer cor” (idem, V):

“Começando pois pelas obrigações que nascem do vosso novo e tão alto nascimento, a primeira e maior de todas é que deveis dar infinitas graças a Deus por vos ter dado conhecimento de si [...] quis Deus que nascessem à Fé debaixo do signo da sua Paixão, e que ela, assim como lhe havia de ser o exemplo para a paciência, lhe fosse também o alívio para o trabalho [...] Que tem que ver a liberdade de uma ave com penas e asas para voar, com a prisão do que se não pode bulir dali por meses e anos, e talvez por toda a vida? [...] se não só de dia, mas de noite vos virdes atados a essas caldeiras com uma forte cadeia, que só vos deixe livres as mãos para o trabalho, e não os pés para dar um passo; nem por isso vos desconsoleis e desanimeis; orai e meditai os mistérios dolorosos, acompanhando a Cristo [...] Oh quem me dera asas como de pombas para voar e descansar! E estas são as mesmas que eu vos prometo no meio dessa miséria [...] porque é tal a virtude dos mistérios dolorosos da Paixão de Cristo para os que orando os meditam [...] que o ferro se lhes converte em prata, o cobre em ouro, a prisão em liberdade, o trabalho em descanso, o inferno em paraíso, e os mesmos homens, posto que pretos, em Anjos.” (Idem, VI-VIII)

4

A título de conclusão, reitero o que afirmei acima: defendo um conceito de filosofia brasileira que implica o aristotelismo da Ratio Studiorum como sendo a sua condição. Não há outra condição. E sem ela não há como entendermos o sentido da filosofia emancipada no Brasil, correspondendo ao empenho de autores como Gonçalves de Magalhães, Tobias Barreto e Farias Brito, ainda no século XIX. Neste sentido, o aristotelismo é a tradição originária da filosofia no Brasil.

Notas
[1] Regras do Prefeito dos Estudos: “nº 30. Quais livros devem ser usados. — Aos alunos de teologia e filosofia não lhes permita quaisquer livros, mas somente alguns determinados, aconselhados pelos professores com o conhecimento do Reitor: a saber (…) a Suma de Santo Tomás para os de teologia, e de Aristóteles para os de filosofia (…) Regras do Professor de Filosofia: “nº 2. Como seguir Aristóteles. — Em questões de alguma importância não se afaste de Aristóteles, a menos que se trate de doutrina oposta à unanimemente recebida pelas escolas, ou, mais ainda, em contradição com a verdadeira fé. <http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2013/02/ratio-studiorum.html>. Status: 17/09/2016.
[3] António Manuel Martins, A Recepção da Metafísica de Aristóteles na Segunda Metade do Século XVI. In: CERQUEIRA, L. A. (org.), Aristotelismo Antiaristotelismo Ensino de filosofia. Rio de Janeiro: Ágora da Ilha, 2000, p. 93-109. Internet: <http://coloquiolusobrasileiro.blogspot.com.br/2008/07/recepo-da-metafsica-de-aristteles-na.html>. Status: 17/09/2016.
[4] Sílvio Romero, A filosofia no Brasil, de 1878 (ROMERO, 1969, p. 7). Internet: <http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2011/07/nota-inicial-o-titulo-deste-pequeno.html>. Status: 17/09/2016.
[5] Idem, p. 33.
[6] Ibidem.
[7] A consciência desse processo de recepção de ideias já se encontra em Francisco de Monte Alverne (1784-1858), onde ele se refere à necessidade histórica de o intelectual brasileiro emancipar o próprio pensamento, observando que a “instrução pública nessa época [1807] era muito circunscrita. A metrópole não queria homens sábios nas suas colônias: era à custa de esforços inauditos, que os brasileiros podiam distinguir-se. Restava um meio fácil de promover o nosso adiantamento, o estudo da língua francesa”. Internet: <http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2010/12/discurso-preliminar-obras-oratorias.html>. Status: 17/09/2016. 
Aluno de Monte Alverne em curso de filosofia no Rio de Janeiro, Gonçalves de Magalhães transformou o que era um simples atalho em estrada comum para a modernização cultural: foi estudar em Paris e lá assimilou o romantismo, e fez a reforma da literatura brasileira; também assimilou o espiritualismo francês, e fez a crítica do espírito contemplativo no Brasil. Internet: <http://textosdefilosofiabrasileira.blogspot.com.br/2009/04/goncalves-de-magalhaes-como-fundador-da.html>. Status: 17/09/2016.
[8] Cf. Sílvio Romero, idem, ibidem.
[9] Idem, ibidem.
[10] Miguel Reale, A Filosofia na Cultura Brasileira, de 1980; in: Estudos de filosofia brasileira. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 1994, p. 31-32.
[11] “A essa luz, cada Nação [...] tornando patentes as suas potencialidades criadoras [...] pode ser representada por determinadas personalidades-modelo [...] como, por exemplo, no caso da Inglaterra, seriam Francis Bacon, David Hume ou Bertrand Russel, a cujos nomes correspondem, de maneira prevalecente, embora não exclusiva, diretrizes empírico-relativistas que se compõem com um eticismo aberto ao humour e à tolerância” (ibidem).
[12] A ideia do culturalismo foi desenvolvida por Miguel Reale ao longo de 40 anos. Seu primeiro estudo, denominado O Culturalismo na ‘Escola do Recife’, é de 1950. Uma década mais tarde, ele formulou sua orientação teórica do seguinte modo: “Universalidade dos problemas, por conseguinte, e condicionalidade histórica dos problemas, eis duas coordenadas inamovíveis do pensamento filosófico. Varia, assim, através do processo histórico, o condicionamento dos problemas universais, bem como o estilo de vida ligado essencialmente à pessoa do filósofo e ao complexo de fatos e valores culturais em que se situa, assistindo razão a Giovanni Gentile quando diz que o caráter universal não exclui que a filosofia seja nacional” (cf. A Filosofia como Autoconsciência de um Povo (1961), Estudos de filosofia brasileira, p. 15). No ano seguinte, ele fala da condicionalidade histórica dos problemas em termos da “maneira pela qual se operou entre nós a recepção das idéias [...] se não queremos nos contentar com a sucessão extrínseca das teorias, analisando-as em seus puros valores abstratos e formais, é mister correlacioná-las com as circunstâncias histórico-culturais que condicionaram, pelo menos em parte, a sua recepção” (cf. Momentos Olvidados do Pensamento Brasileiro (1962), idem, pp. 74 e 76). Em 1980, ele publica “A Filosofia na Cultura Brasileira”. Finalmente, em 1990, ele assim se manifesta “Foi em 1950 [...] que [...] apreciei pela primeira vez o pensamento de Tobias Barreto [...] Estava longe de imaginar, naquela época, que esse pequeno ensaio iria ter desdobramento em vários sentidos, até o ponto de dar origem ao “culturalismo”, talvez a única corrente filosófica brasileira constituída na imanência de nossas circunstâncias, não obstante se achar vinculada a múltiplas fontes do pensamento europeu” (cf. A Cultura no Pensamento de Tobias Barreto (1990), idem, p. 113).
[13] “Refletiu ele, nesse passo, o movimento geral de ideias dominantes em meados do século XIX, quando do próprio bojo do materialismo partia a reação contra [...] os pressupostos dogmáticos do materialismo [...] voltando a inquietar [...] problemas [...] relativos à [...] necessidade de distinguir-se o físico e o psíquico, o mundo da matéria e o do espírito” (cf. O Culturalismo na “Escola do Recife”, idem, p. 104).
[14] Segundo Miguel Reale, “há na cultura lusíada duas tendências que de certa forma se contrabalançam ou se completam: uma ligada [...] à tradição aristotélico-tomista [...] a outra, de caráter empírico-positivo [...] À primeira corrente pertencem os grandes comentários de Pedro da Fonseca [...] à segunda corresponde o admirável Quod nihil scitur de Francisco Sanches [...] É possível encontrar entre os moralistas do período colonial, ou em escritos de natureza política, alguns traços de empirismo [...] mas é, sem dúvida, a orientação escolástica que prevalece, sem se esquecer que já no século XVII o escolasticismo português descambava para mero verbalismo vazio, destituído de interesse especulativo” (cf. Momentos Olvidados do Pensamento Brasileiro (1962), idem, p. 80).
[15] Segundo Antônio Paim: “A filosofia brasileira, embora visceralmente ligada à portuguesa, seguiu uma linha autônoma [...] As razões profundas dessa diversidade encontram-se no peso que se atribuiu àquela herança místico-religiosa no momento da Independência. A elite da nova nação se tinha heranças a preservar estas consistiam no legado iluminista do momento pombalino [...] Essa circunstância reduz muito o interesse pelo pensamento filosófico na Colônia” (cf. História das ideias filosóficas no Brasil (1ª ed. 1967, 267 páginas; 5ª ed. 1997, 760 páginas). São Paulo: Convívio, 1987, pp. 203 e 205).
[16] Trata-se do problema tomasiano da individuação, a materia signata quantitate (cf. O ente e a essência, II; ed. Vozes, p. 19).
[17] Cf. Cantos do fim do século (poesias, 1878), Prólogo.
[18] Depois de ler o livro de José Soriano de Souza, Lições de filosofia elementar, racional e moral (Recife: Livraria Acadêmica, 1871), Tobias Barreto fez o seguinte comentário: “O ilustre doutor [doutorado em Filosofia por Louvain e professor de filosofia de um dos mais importantes colégios da região, o Ginásio Pernambucano] ainda julga que a sociedade moderna é teatro das velhas contendas entre a razão e a fé [...] O Dr. Soriano está muitíssimo atrasado [...] no meio do triunfo geral da ciência moderna [...] a questão filosófica mais inquietante, se não a de maior alcance, tem sido levantada sobre a própria essência e limites da filosofia” (cf. O Atraso da Filosofia no Brasil (1872); obra citada, pp. 165 e 169).
[19] “No Brasil da época [período do catolicismo barroco], era mais importante enfrentar uma situação existencial inquietante do que comentar textos filosóficos da tradição clássica [...] O aristotelismo português nem sequer chegou a se estabelecer aqui, deixando todo o espaço disponível para uma postura mais crítica, pessimista e cética, que apresenta analogias com a filosofia sanchista e não com o comentário tomista ao estilo de Fonseca” (cf. Paulo Roberto Margutti Pinto, O Padre Antônio Vieira e o Pensamento Filosófico Brasileiro. SínteseRevista de Filosofia, v. 35, nº 112 (2008), p. 184-185).
[20] Cf. Filosofia brasileira – Ontogênese da consciência de si. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 37-38.
[21] Antônio Paim, História das ideias filosóficas no Brasil, ed. cit., p. 21.
[22] Idem, p. 205-206. Ainda recentemente: “O Período do Catolicismo Barroco, que vai de 1560 a 1808, correspondeu aproximadamente à Segunda Escolástica Portuguesa, mas dela se diferencia...” (cf. Paulo Roberto Margutti Pinto, idem, p. 180).
[23] Em seu De libero arbitrio (1439), Lorenzo Valla se propôs examinar se a presciência divina é incompatível com a liberdade humana de arbítrio, e concluiu pela necessidade da fé como fundamento da certeza; em seu Libri quinque de facto, de libero arbitrio et de praedestinatione (1520), Pomponazzi defendeu a tese de uma intervenção arbitrária de Deus; Erasmo de Roterdam, por sua vez, na obra De libero arbitrio (1524) tentou evitar os desvios dos reformadores, procurando uma mediação entre a Reforma e a Contrarreforma. Em resposta a Erasmo, Lutero publicou De servo arbitrio (1525), onde ressalta o poder do Criador de transformar de fato e de direito o livre-arbítrio da criação em servo-arbítrio das criaturas, de maneira que o homem tenderia naturalmente a perder o sentido absoluto da liberdade da criação, porque ao desaparecer sua semelhança com o Criador, em consequência das limitações impostas pela própria natureza, transformar-se-ia o filius Dei em servus Dei.
[24] Luis de Molina (1535-1600) ensinou filosofia nas universidades de Coimbra e de Évora. Em sua Concordia (Lisboa, 1588), a denominação scientia media deve-se a duas razões: não só porque medeia entre as duas categorias da teoria do conhecimento estabelecida desde Tomás de Aquino, a “ciência natural” e a “ciência livre”, mas também porque compartilha de características de cada uma delas, vindo depois da “ciência natural” e antes da “ciência livre”.
[25] Amândio Coxito, Método e Ensino em Pedro da Fonseca e no Curso Conimbricense. Estudos sobre filosofia em Portugal no século XVI. Lisboa: INCM, 2005, p. 121-154.
[26] “O fato é que o ideal de uma ciência perfeita deduzida de princípios absolutamente certos é dificilmente realizável. Fonseca reconhece-o quando confessa que ‘não é fácil nem frequente perceber os princípios próprios das coisas’; e noutro passo escreve que o ‘lugar’ das causas (pelo qual se descobre o termo médio no argumento demonstrativo) é ‘acessível a poucos’, pelo que muitas ciências ficariam empobrecidas se fossem esvaziadas dos seus conteúdos prováveis. Está aqui implícito o reconhecimento de que a maior parte do saber humano tem por objeto matérias controversas, quer dizer, questões que não permitem uma solução dogmática”. Cf. Amândio Coxito, Pedro da Fonseca: A Lógica Tópica, idem, p. 207.
[27] “Importa salientar aqui o contraste estabelecido por Fonseca, no contexto do terceiro uso de ‘contingente’, entre os domínios da ‘natureza’ e da ‘liberdade’. Qual é o princípio que permite escapar à necessidade que regula tudo quanto acontece na natureza? Esse princípio é, claramente, a razão (ratio) no exercício efectivo de todas as suas potencialidades. Assim, não basta ser dotado de razão no sentido de ter as capacidades com que geralmente é dotada a espécie humana. É preciso ter capacidade de usar efectivamente esta razão para podermos falar de actos verdadeiramente livres. O texto de Fonseca não deixa dúvidas [...] A verdadeira liberdade, aquela que pode responsabilizar-se pelas suas decisões e permite, portanto, que se fale de mérito ou demérito do agente livre ‘postula o uso da razão’ e o ‘poder de controlar os seus actos’ (dominium) [...] O que distingue estes agentes é o facto de não estarem totalmente sujeitos às causas naturais, mas serem ‘agentia per intellectum’. Em contraposição, no domínio dos chamados ‘agentes puramente naturais’ a necessidade impera” (cf. António Manuel Martins, Liberdade como Princípio em Pedro da Fonseca). Internet: <http://iseminariofariasbrito.blogspot.com/2008/06/liberdade-como-princpio-em-pedro-da.html>. Status: 18/09/2016.
[28] Cf. Antônio Paim, ob. cit., ed. cit., p. 25.

[29] “[O jesuíta Antônio Vieira] assume dois pesos e duas medidas para resolver algumas das questões mais candentes da sociedade colonial: para os negros africanos, o mais adequado é a escravidão; para os indígenas, o mais adequado é a conversão [...] Vieira simplesmente ignora sua defesa da igualdade dos seres humanos” (cf. Paulo Roberto Margutti Pinto, Aspectos da Visão Filosófica de Mundo no Brasil do Período Barroco (1601-1768). In: WRIGLEY, M. B. & SMITH, P. J. (orgs.). O filósofo e sua história. Uma homenagem a Oswaldo Porchat. Campinas: UNICAMP, CLE, 2003, p. 353). Ou ainda: “Vieira parece ter experimentado — mais do que qualquer outro contemporâneo — a contradição performativa entre seus ideais ético-religiosos e a moral degradada que caracterizava a Colônia. Isso está bem expresso na falta de consistência [...] entre suas críticas ao comportamento dos colonos e sua defesa da escravidão africana [...] o viver em contradição reforça em Vieira a constatação de que a verdadeira realidade se encontra para além deste mundo interesseiro e egoísta. Nessa perspectiva, o salvacionismo de Vieira é tão intenso” (cf. Paulo Roberto Margutti Pinto, O Padre Antônio Vieira e o Pensamento Filosófico Brasileiro. SínteseRevista de Filosofia, v. 35, nº 112 (2008), p. 182).

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